Vivemos o auge da era da informação, mas pouco conhecemos da realidade que nos cerca. Entenda como, em tempos de fake news, é fundamental falarmos sobre ensino do senso crítico!
“Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade” (Autor desconhecido)
Para o ano de 2019, a competência socioemocional que será trabalhada como eixo formativo pela Escola da Inteligência será: Consciência Crítica. Uma escolha extremamente oportuna, diante da realidade social em que vivemos. Realidade na qual opinião (doxa) e conhecimento (episteme) parecem ser conceitos sinônimos, e qualquer um, em qualquer lugar intitula-se influenciador; Momento histórico em que fake news se tornaram tão comuns quanto notícias verdadeiras, e se espalham 70% mais rápido que essas (Instituto de Tecnologia de Massachusetts – MIT); Em que, é urgente, se trabalhar a importância da responsabilidade ética num país onde pelo menos 33% dos brasileiros já compartilharam fake news sem saber e 49% não sabe identificar quando uma notícia é falsa ou verdadeira (MINDMINERS, 2018). Vivemos o auge da era da informação, mas ainda assim muito pouco conhecemos da realidade que nos cerca.
Platão, no livro VII do República, conta-nos a Alegoria da Caverna, um diálogo escrito entre 380-370 a.C., que de maneira sintética apresentar-vos-ei pela narrativa da filosofa brasileira Marilena Chauí – extraída do livro convite a filosofia.
Imaginemos uma caverna subterrânea onde, desde a infância, geração após geração, seres humanos estão aprisionados. Suas pernas e seus pescoços estão algemados de tal modo que são forçados a permanecer sempre no mesmo lugar e a olhar apenas para frente, não podendo girar a cabeça nem para trás nem para os lados. A entrada da caverna permite que alguma luz exterior ali penetre, de modo que se possa, na semiobscuridade, enxergar o que se passa no interior.
A luz que ali entra provém de uma imensa e alta fogueira externa. Entre ela e os prisioneiros – no exterior, portanto – há um caminho ascendente ao longo do qual foi erguida uma mureta, como se fosse a parte fronteira de um palco de marionetes. Ao longo dessa mureta-palco, homens transportam estatuetas de todo tipo, com figuras de seres humanos, animais e todas as coisas.
Por causa da luz da fogueira e da posição ocupada por ela, os prisioneiros enxergam na parede do fundo da caverna as sombras das estatuetas transportadas, mas sem poderem ver as próprias estatuetas, nem os homens que as transportam. Como jamais viram outra coisa, os prisioneiros imaginam que as sombras vistas são as próprias coisas. Ou seja, não podem saber que são sombras, nem podem saber que são imagens (estatuetas de coisas), nem que há outros seres humanos reais fora da caverna.
Também não podem saber que enxergam porque há a fogueira e a luz no exterior e imaginam que toda luminosidade possível é a que reina na caverna.
Que aconteceria, indaga Platão, se alguém libertasse os prisioneiros? Que faria um prisioneiro libertado? Em primeiro lugar, olharia toda a caverna, veria os outros seres humanos, a mureta, as estatuetas e a fogueira. Embora dolorido pelos anos de imobilidade, começaria a caminhar, dirigindo-se à entrada da caverna e, deparando com o caminho ascendente, nele adentraria. Num primeiro momento, ficaria completamente cego, pois a fogueira na verdade é a luz do sol e ele ficaria inteiramente ofuscado por ela. Depois, acostumando-se com a claridade, veria os homens que transportam as estatuetas e, prosseguindo no caminho, enxergaria as próprias coisas, descobrindo que, durante toda sua vida, não vira senão sombras de imagens (as sombras das estatuetas projetadas no fundo da caverna) e que somente agora está contemplando a própria realidade.
Libertado e conhecedor do mundo, o prisioneiro regressaria à caverna, ficaria desnorteado pela escuridão, contaria aos outros o que viu e tentaria libertá-los.
Que lhe aconteceria nesse retorno? Os demais prisioneiros zombariam dele, não acreditariam em suas palavras e, se não conseguissem silenciá-lo com suas caçoadas, tentariam fazê-lo espancando-o e, se mesmo assim, ele teimasse em afirmar o que viu e os convidasse a sair da caverna, certamente acabariam por matá-lo. Mas, quem sabe, alguns poderiam ouvi-lo e, contra a vontade dos demais, também decidissem sair da caverna rumo à realidade (CHAUÍ, p. 46-47, 2003).
A partir dessa narrativa, desejo tecer uma breve reflexão sobre a importância de se trabalhar a consciência crítica, como uma singular e atual competência para o século XXI.
A caverna apresentada por Platão, é o mundo em que vivemos. Espaço que apesar de toda modernidade, do avanço tecnológico, e da sensação de conforto e segurança, pode, por vezes ser sombrio, frio, individualizador, sufocante… na caverna, estamos, mas, não somos! E como consequência direta temos que a cada 40 segundos uma pessoa se suicida no mundo (OMS, 2016). É urgente quebrar os grilhões que nos aprisionam.
Que são as sombras observadas pelos homens presos no interior da caverna? As sombras observadas são as informações, opiniões, fantasias e ilusões que hoje, obtemos através dos meios de comunicação, das redes sociais, pela internet. As sombras não são a verdade, não propiciam uma experiência com o mundo real. As sombras representam a felicidade propagada pelas redes sociais, mas não revelam os dramas, tragédias, angustias e tristezas daqueles que estão a rir nas fotos e nos vídeos. As sombras são as mentiras propagadas, que geram uma pseudo-sensação de poder. As sombras são respostas fáceis, alimento, aos nossos prazeres imediatos. As sombras são os discursos demagógicos que nos inebriam e nos deixam apaixonadamente inertes, e por consequência presos na armadilha do conformismo.
O prisioneiro que se liberta da caverna é aquele que podemos adjetivar como curioso. O prisioneiro liberto é aquele que não tem medo de errar, ao contrário, aprende com seus erros. O prisioneiro liberto é aquele que dúvida do mundo, das relações, das certezas socialmente cultivadas, dos discursos, que duvida, inclusive, de si mesmo. O prisioneiro liberto é um inconformado com o mundo, com a caverna e com a sua pseudo experiencia da realidade. O prisioneiro liberto é aquele que ao longo do seu desenvolvimento, vai formando um “EU” forte, protagonista da sua própria história, capaz de fazer escolhas e tomar decisões. Vive inúmeras contradições, mas busca sempre por respostas saudáveis aos conflitos e desafios que vivência cotidianamente. O prisioneiro liberto será aquele a quem, na maior parte das vezes, se chamará louco, diferente, insensato, desordeiro, minoria, tolo, agitador e tantos outros adjetivos que aqui possam caber. O prisioneiro liberto é aquele que desenvolve consciência crítica ao longo da sua experiencia do viver. É, portanto, solidário, empático, resiliente e altruísta.
A luz exterior que ilumina o interior da caverna, é a experiencia do real, da “verdade”. Para se chegar a ela se percorre um longo caminho. Para se chegar a verdade, muitas vezes será necessário trilhar um caminho doloroso, de autodiálogo, autoconhecimento, desconstrução de preconceitos e rótulos, que irá requerer disciplina, organização e planejamento. Chegar a essa luz, só se é possível após a observação do mundo, do real, e assim sendo, de sua problematização. Então, levantam-se hipóteses e consequentemente experimenta-se cada uma delas, para se chegar ao conhecimento, a luz, a uma teoria, a uma “verdade” – lei cientifica, que terá validade até que se torne incapaz de explicar determinados fatos ou fenômenos, ou até que outro descobrimento comprovado se oponha a ela. A luz exterior é um convite à saída do senso comum. É um convite à uma visão multifocal.
O mundo exterior para o qual o prisioneiro liberto migra, é o mundo da verdadeira realidade. Lugar onde não se contemplam sombras, reflexos e vultos, mas a realidade nua e crua. Ora, tome-se certo cuidado, pois, a realidade não pode ser encarada como perfeita, lugar da perfeição, ela, pode ser, tanto quanto a caverna, um ambiente desconfortável, doentio, inóspito, asfixiante. O que então difere o mundo exterior, o da realidade, da caverna? O fato de que se pode transformar o mundo exterior, transformar a realidade, enquanto na caverna vivia-se como cativo, passivamente aprisionado. Atente-se, ainda, ao fato de que o mais importante nessa alegoria é o percurso trilhado pelo prisioneiro liberto, no qual ele empreende uma jornada de dúvida, crítica, autodiálogo, autoconhecimento, de tomada de decisão e de protagonismo
Solidário e empático, o prisioneiro liberto, tem a opção de voltar para partilhar com os seus, sua nova experiencia. Para auxilia-los à liberdade. Difícil tarefa, pois sente que pode não ser escutado, que pode ser maltratado e morto. Nossas angustias, não podem se tornar medos incapacitantes, não podem nos isentar à responsabilidade de nos posicionarmos, de comunicarmos ao mundo outras verdades, outros olhares, outras possibilidades. Enquanto espécie, partilhamos nossas descobertas para sermos cada vez mais, humanos. O prisioneiro liberto tem agora a missão de questionar o mundo sensível, tido como o mundo real e o único verdadeiro, dos seus companheiros de caverna. A alegoria é clara, nem todos darão ouvidos, mas a alguém essa “boa nova” germinará liberdade.
Aprender a fazer a gestão dos pensamentos é, então, um primeiro passo para a construção de uma consciência crítica. Por isso a Escola da Inteligência fomenta técnicas como o D.C.D (Duvidar, Criticar e Determinar), O silêncio proativo, e a mesa redonda do EU. Técnicas trabalhadas com alunos desde a mais tenra infância até a maturidade. Só assim alcançaremos a consciência crítica que é uma postura comprometida com a realidade. Comprometida com a busca pela verdade. É um exercício dialógico. Requer escuta e empatia. Visa o bem comum, não é egocêntrica ou egoísta, é libertadora. Talvez a verdade seja apenas uma: há muitas verdades! E o sujeito com consciência crítica é aquele que de maneira multifocal consegue SER, em um mundo, em uma caverna, onde a maioria apenas ESTÁ! Que nossas mentiras repetidas e compartilhadas, não se tornem verdades pelo nosso comodismo, mas sejam degraus para sairmos da caverna enxergarmos a realidade, e cotidianamente transformá-la!
Leonardo Andrade é formado em Pedagogia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Mestrando em Políticas Educacionais, pela referida instituição. Trabalha como Consultor Educacional pela Escola da inteligência.
REFERÊNCIAS
CHAUÍ, M., Convite à Filosofia, São Paulo, 13ª ed., Ática, 2003.
‘FAKE NEWS’ se espalham 70% mais rápido que as notícias verdadeiras, diz MIT. Istoé on-line, São Paulo, 08 de mar. de 2018. EDIÇÃO Nº 2561 24/01. Disponível em: https://istoe.com.br/fake-news-se-espalham-70-mais-rapido-que-as-noticias-verdadeiras-diz-mit/. Acesso em 23 de jan. 2019.
MINDMINERS, Aera da pós-privacidade, um estudo sobre como o brasileiro enxerga a privacidade da informação e os impactos da nova lei de proteção de dados brasileira. Disponível em: http://www.abcdacomunicacao.com.br/file/MindMiners-I-Estudo-Original-I-Data-Citizens.pdf. Acesso em: 07 fev. 2019.
UMA PESSOA COMETE SUICÍDIO A CADA 40 SEGUNDOS NO MUNDO, diz OMS. O Globo, São Paulo, 11 de jun. de 2016. Disponivel em: https://oglobo.globo.com/sociedade/saude/uma-pessoa-comete-suicidio-cada-40-segundos-no-mundo-diz-oms-13826787. Acesso em: 07 fev. 2019.